Solidariedade cósmica para o reencantamento do mundo

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"Serge Latouche, economista, sociólogo e antropólogo francês, fez questão de assumir esse desafio para abordar a relação entre economia e religião, em sua palestra Sociedade convivial: Uma perspectiva ecoteológica, dentro do Ciclo de Palestras: Economia de Baixo Carbono. Limites e Possibilidades, promovido pelo IHU."

Um “laico anticlerical” falando para um público de religiosas e religiosos. Serge Latouche, economista, sociólogo e antropólogo francês, fez questão de assumir esse desafio para abordar a relação entre economia e religião, em sua palestra Sociedade convivial: Uma perspectiva ecoteológica, dentro do Ciclo de Palestras: Economia de Baixo Carbono. Limites e Possibilidades, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

 

Em sua fala, o professor emérito de economia da Universidade de Orsay, na França, ponderou o uso do termo “religião” para se falar de crescimento e economia. De um lado, afirmou Latouche, falar de economia como religião pode ser uma blasfêmia, algo impróprio para o pensamento crítico, assim como pensadores que aproximam os totalitarismos históricos de conceitos como “religiões profanas”. De outro lado, porém, o fato é que a linguagem econômica abunda em termos religiosos.

 

Mesmo assim, é importante, de início, perceber que “religião e economia são coisas diferentes”. A “economia prática e teórica, profana e laica, é uma antirreligião, e não religião, mesmo no sentido metafórico”, afirmou. Citando François Flahaut, Latouche afirmou que a economia substitui a teologia, mas não a religião – a primeira não tem nada a dizer sobre o que é fonte de vida para as outras pessoas ou aquilo que as religa com os demais.

 

Contudo, seguindo a definição de religião de Émile Durkheim como um “conjunto de crenças compartilhadas que ligam uma dada coletividade”, entretanto, a economia se encaixa bem na definição – até mesmo substituindo as religiões anteriores e definindo uma “catolicidade” (universalidade) nas sociedades contemporâneas.

 

Por isso, Latouche abordou dois tópicos relevantes para se pensar a relação entre o decrescimento e o sagrado: 1) a existência de um culto quase universal e trans-histórico do valor encarnado (como ouro, prata, bens preciosos, aquilo que Alex Zanotelli chamou de “deus-dinheiro”) e o advento de uma nova fé no progresso e nos seus corolários (técnica, ciência, crescimento); e 2) a penetração da mercantilização e do dinheiro em todos os poros da vida social. É a partir desses elementos, defendeu o economista, que podemos falar de uma “religião da economia”.

 

Assim, questionou, em um leve tom de brincadeira: “É possível sacralizar o decrescimento e instaurar uma nova religião da qual eu seria o profeta?”. Para ele, é necessário “dessacralizar o crescimento que foi sacralizado”. Ou seja, revelar o modo como o crescimento foi sacralizado.

 

Segundo Latouche, essa sacralização do crescimento – à qual é necessário dessacralizar – se deu, em primeiro lugar, pela hipóstase do dinheiro. O dinheiro, explicou, é o atual “cordeiro de ouro que está sempre de pé”. Vivemos uma idolatria do capital. Como afirmava Michel Piquemal, “o dinheiro é o Alfa e o ômega, o Só e o Uno […], o Divino Incriado”.

 

Embora essa idolatria do “cordeiro de ouro” seja uma atividade contrária à religião, ela passou por uma santificação, o que demonstra, defendeu Latouche, que religião e antirreligião mantêm estranhas cumplicidades. “Mesmo maldito, o dinheiro mantém certos atributos do sagrado”, comentou. E podemos ver isso até na Bíblia, com as referências a determinadas tarifações e trocas religiosas perante Deus.

 

Por isso, há um “circuito energético inconsciente do valor” presente na religião e na economia, que chega a ver uma estreita relação entre a bênção divina e a “acumulação material ilimitada”, afirmou.

 

Em segundo lugar, a sacralização do crescimento ocorreu por uma apoteose econômica, explicou o economista. O crescimento, disse, é um fenômeno natural – nascimento, desenvolvimento, maturação, declínio, morte. Por outro lado, nas sociedades tradicionais, sempre houve a existência de uma “economia antropocósmica”, em que o ciclo da vida é visto como uma aliança entre seres humanos, plantas e animais, com troca e reciprocidade.

 

Mas, ao longo da história, os dois campos – sagrado e profano – passaram a se opor. Assim, conjunta e simetricamente, desenvolveram-se uma “economia da religião” e uma “religião da economia”. Os símbolos se tornam fetiches, assujeitando a humanidade. “Os templos se tornaram os primeiros bancos, e os bancos se tornam- os últimos templos”, resumiu Latouche. Desenvolveu-se uma “patologia do sagrado”, a partir do distanciamento entre simbólico e real.

 

Nessa “transposição da nebulosa do religioso para um campo problemático” (o econômico), ficam graves questões em aberto: o crescimento substitui Deus? Quem são as vítimas, os mártires, os sacrificados em termos econômicos?, questionou.

 

Em terceiro lugar, a sacralização do crescimento também ocorreu pelo desenvolvimento de um imaginário religioso da modernidade. Para Latouche, a colonização do imaginário pelo econômico é um fenômeno muito recente no tempo e muito restrito no espaço: somente a partir do século XVII e exclusivamente no Ocidente. Com essa colonização, o progresso passou a ser uma divindade com seus próprios elementos de sagrado, como dogmas, doutrinas, cultos, sacrifícios e vítimas. “Ele é o núcleo rígido da religião da economia”, afirmou Latouche. Esse imaginário religioso vê como semelhantes e dependentes o “bem-estar” e o “bem-ter”, disse.

 

Por isso, Latouche inverteu a questão e perguntou: deve-se sacralizar o decrescimento? Para ele, vivemos um “desencantamento do mundo”, como afirmava Max Weber, que deve ser entendido no sentido da “substituição da explicação mágica dos fenômenos pela explicação da ciência”. A partir da modernidade, ciência e técnica desenvolvem um outro encantamento, que se inter-relaciona com a colonização do imaginário.

 

Reencantamento do mundo

 

A sociedade do decrescimento, nesse contexto, é um “reencantamento do mundo”, que nos permite ter a capacidade de nos encantar diante da beleza do mundo. É nesse sentido que o decrescimento é também “acrescimento”, ou seja, um “ateísmo econômico”, um “abandono da religião do crescimento”. “O decrescimento – afirmou Latouche – implica uma descrença na fé da economia, no culto do dinheiro e no ritual do consumo.

 

Mas, então, questionou-se, será que convém criar uma nova religião, ou opor aos mitos do progresso outros mitos tão sedutores e irracionais quanto os do progresso? O decrescimento nos convidaria a nos tornarmos adoradores de Gaia ou adeptos da deep ecology? Nesse ponto, é preciso ficar alerta, brincou Latouche, porque a única diferença entre seita e igreja é que “igreja é uma seita que deu certo”.

 

“A aposta do decrescimento é outra. Não nos convertemos em adoradores da Mãe Natureza, mesmo que chamada de Pachamama, como se fosse a deusa Razão da Revolução Francesa. Não queremos nos transformar em sacerdotes do evangelho da abundância frugal”, defendeu o economista. “A via do decrescimento não é uma religião nem uma antirreligião, mas sim uma sabedoria”, afirmou.

 

E será que o decrescimento exigiria uma espiritualidade? Uma resposta possível é o fato de Latouche não ver nada mais do que uma diferença de terminologia entre conceitos como panteísmo de Baruch Spinoza, cosmopoetismo de David Henry Thoreau, cosmoteandrismo de Raimon Panikkar ou – a preferida por ele – ecoantropocentrismo (nem antropocêntrico nem ecocêntrico): ou seja, a “busca de um sagrado não necessariamente religioso”, de uma “transcendência imanente”, que também se manifesta na poesia, música, arte. “Êxtase” que nos permita fazer sonhar e “reencantar os sonhos da primeira infância”, comentou o economista.

 

“É preciso sacralizar os raros espaços verdes que ainda não sujamos. É preciso prestar culto às fontes ainda não poluídas e às florestas ainda não derrubadas pela soja transgênica”, convocou Latouche. “Mas não é preciso acreditar em um sobrenatural para isso”, ponderou. “As fábulas dos poetas são necessárias para reencantar o mundo, mas é preciso evitar que não sejam instrumentalizadas pela máquina teocrática”.

 

Por isso, Latouche não nega – e até comenta com gosto – o título que lhe foi dado por uma jornalista italiana em uma recente entrevista: "um pagão que tem fé". Porque Latouche lamenta, nesse sentido, que muitas pessoas religiosas – inclusive cristãs – tenha perdido a fé, e que muitas religiões não tenham nada de sagrado.

 

Por isso também a sua crítica radical ao próprio conceito de “economia”, que hoje é entendido como “fazer dinheiro com dinheiro”. O sentido original – da ética aristotélica da relação entre o homem e a natureza sem destruí-la – se perdeu. Precisamos de uma outra ética. Precisamos reconhecer a “economia” como uma “palavra tóxica” – expressão com a qual Ivan Illich intitulou um dicionário que também incluía outros termos como “necessidade”, “desenvolvimento”, “crescimento”, “produto interno bruto”, “nível de vida”.

 

Por isso, ainda, a crítica de Latouche à encíclica Caritas in veritate, que, para ele, é um texto puramente “econômico”, propondo um debate e uma reflexão a partir de um âmbito que não diz respeito à Igreja.

 

Enfim, nessa intensa semana de reflexão, de descolonização, reavaliação e reconceitualização – e outros Rs ainda – das sociedades contemporâneas e do seu imaginário, Latouche propôs, em síntese, a busca por uma “solidariedade cósmica”, convivial, sóbria, serena. Para evitar que, ao cabo do processo de “obsolescência programada dos produtos”, cheguemos à “obsolescência e à dessacralização do próprio ser humano”.

 

Fuente: Instituto Humanitas Unisinos

Temas: Nuevos paradigmas

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