Brasil: A terra como um novo modo de ser

Idioma Portugués
País Brasil

Na comemoração dos 25 anos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o sabor da festa talvez vai ser um pouco agridoce

Sem dúvida, há muito para se comemorar, especialmente em um marco histórico como esse: são 370 mil famílias assentadas em ocupações de terras; 2 mil escolas públicas em acampamentos e assentamentos; acesso à educação garantido a mais de 160 mil crianças e adolescentes; 50 mil adultos e jovens alfabetizados; mais de 4.000 professores formados; mais de 400 associações e cooperativas criadas em assentamentos, dentre muitas outras conquistas.

A festa, no entanto, poderia ser mais completa se o momento histórico do país tivesse sido a realização de um sonho aguardado há tanto tempo – e também alimentado pelo MST: “O nosso líder, preparado pelos movimentos que vieram crescendo durante 30 anos nesse passado, nos frustrou, na pessoa do Lula”, afirma D. Tomás Balduíno*.

Criticando também o Partido dos Trabalhadores (PT), “que nunca foi da terra”, e reconhecendo ainda que o MST se tornou mais “ad intra”, Dom Tomás Balduíno, em entrevista especial à IHU On-Line, celebra as conquistas do Movimento, que “se tornou referência” para todos os movimentos sociais durante esses 25 anos e reflete sobre a importância da terra como “um novo modo de ser”. Confira a entrevista.

O que significa comemorar 25 anos de luta pela terra e pela Reforma Agrária?
Isso tem um significado brasileiro e latino-americano, porque é uma expectativa de todo o continente, dos povos indígenas, dos negros, dos quilombolas e também dos camponeses. E o MST, para a alegria nossa, tornou-se referência para esses diversos movimentos. Tendo nascido em plena ditadura militar, ele se desenvolveu em oposição ao próprio sistema, ao próprio governo, na linha de uma renovação. Sempre o Movimento – assim como as organizações indígenas – desde que começou a se organizar com o apoio da Igreja, numa linha nova, de se tornar sujeitos de sua caminhada, foi muito além das expectativas particulares dos diversos grupos. Eles foram sempre na linha de uma mudança da política global. Um exemplo disso é o Exército Zapatista. Eles mesmos declararam que o interesse deles não era salvar a causa de uns poucos índios, de uns pobres índios, mas sim a causa do cidadão e da cidadã do México em geral; estavam empenhados nisso.

Então, o símbolo, a referência maior é a terra. Mas é uma terra que é mais do que terra. Ou seja, não é apenas o pedaço de chão da sobrevivência, mas é a mudança. É um novo modo de ser. Um Brasil diferente, o Brasil que nós queremos, o Brasil dos nossos sonhos. Mas não é um sonho apenas de lavradores e de índios, mas sim de todo o cidadão e cidadã brasileiros. Tomemos uma organização indígena, por exemplo o Coimi [Comitê Inter-Tribal de Mulheres Indígenas]. Eles visam a esse mesmo objetivo. Não é só defender interesses internos indigenistas, mas se integrar na luta geral em vista de um mundo diferente.

Quais são os pontos de maior autocrítica do MST, tanto filosóficos quanto práticos e quais são os valores basilares, que não serão abandonados?
O que entra nessa autocrítica – eles todos estão sensíveis a isso – é o que acontece em todo o movimento, sobretudo em tempos de mudança. Porque houve uma mudança histórica no Brasil. O ante-Lula, o durante-o-Lula e o pós-Lula. Isso teve uma influência sobre os diversos movimentos. Eu acho que influenciou negativamente no sentido de refluir sobre si mesmos. O Movimento – que tinha uma projeção mais ampla, mais integrada aos diversos movimentos, durante esse tempo, sobretudo o do atual governo – em busca talvez de defender recursos para poder manter as suas frentes de trabalho, de formação, tornou-se mais para dentro, mais "ad intra". Parece ter menos visibilidade na mídia, no sentido do avanço da reforma agrária, e mais no sentido de aprimoramento da própria instituição, dos seus quadros, do estudo universitário, da formação em profundidade e em extensão dos seus integrantes. Isso deve ser revisto na autocrítica. O que faz a força do Movimento e o que acaba formando, muito mais do que uma escola, é a própria luta, a luta em vista da obtenção daquilo que é o clamor da sociedade civil, que acaba sendo desprezado pelo governo, que está em outra perspectiva, completamente diferente.

O PT e a terra

Agora, aquilo que é basilar no Movimento é a referência à terra, no sentido da contradição que acompanha a nossa história, desde a chegada dos portugueses, e que pouco a pouco foi se tornando objeto de reivindicação, de luta, de batalhas, de grupos de Antônio Conselheiro, de Zumbi dos Palmares, do Contestado, Trombas e Formoso, tudo em torno da terra. E também no sentido ideológico, de busca de entender o que é a reforma agrária, o que pode ser a solução para a democratização da terra; tornar a terra não matéria-prima do grande negócio nacional e multinacional, de exportação ou de exploração, de devastação, mas ter uma outra convivência com a terra. Eu acho que essa lição o MST traz.
O próprio nome, o "T", traz essa marca. Aliás, no nosso país, deveria ter até partido – não só movimento – com referência à terra. Porque o "T" do PT não é terra. Nunca o PT foi da terra, nunca. Ele nunca entendeu a terra. Nunca tivemos um partido liado do povo da terra, no sentido dessa luta. É tudo urbano, é tudo na tentativa de alinhamento com o modelo europeu ou norte-americano, esquecendo da mística que é inerente a esses povos que aqui estão, que são considerados atrasados. E hoje, cada vez mais, com a evolução da problemática ecológica, se percebe que é um povo que traz consigo uma grande sabedoria, que não pode ser perdida, e que corre o risco de ser perdida em vista de um mundo sem alma, sem mística, sem inspiração. Porque, nesse sentido, a terra – quando digo “terra” é mais do que terra – é cultura, terra é festa, terra é a inspiração do povo latino-americano, do povo brasileiro. Nesse sentido, o que eu chamo basilar, fundamental no MST, é essa referência definitiva ao elemento telúrico, que dá a eles um rosto novo, de renovação, de capacidade de trazer para a nossa sociedade uma transformação, uma verdadeira revolução. Aliás, as grandes revoluções mundiais vieram por meio do campo.

Dados da CPT apontam uma queda nos números do MST, principalmente no número de famílias que ocupam terras (que caiu de 65.552, em 2003 – primeiro ano do governo Lula –, para 49.158, em 2007) e o de novas famílias acampadas (que foi de 59.082 para 6.299 – menos 89,34%). O MST perdeu sua força original? A que se deve essa redução?

Exatamente, a pressão governamental. A opção do Lula nunca foi terra. Foi no sentido do grande negócio, dos megaprojetos, transposição do Rio São Francisco, etanol, cana [-de-açúcar], e isso incluindo devastação, a própria Amazônia correndo riscos. Felizmente, a pressão internacional veio a tempo de salvar a Amazônia. Não veio a tempo de salvar o bioma Cerrado, que corre o risco de extinção debaixo da engrenagem do agrohidronegócio. Então, há maior pressão no sentido do arrefecimento dos movimentos, até do próprio MST. A ordem do dia do governo Lula é calma, não se precipitar. Na Marcha dos Sem-Terra, que cinco mil marchantes fizeram, 200Km de Goiânia a Brasília, ele dizia: “o apressado come cru”. É uma maneira de acalmar, arrefecer. E aí vem cooptação, vem verbinha daqui, verbinha dacolá, e o pessoal começa então a se ajustar. Além do mais, a grande marcha brasileira, dos pobres, correndo atrás da Bolsa Esmola (Bolsa Família), e achando que isso é solução, achando que isso vai resolver o problema. Isso dispersou as forças, dispersou a própria força no campo. E sobretudo entrou, concomitantemente, a pressão do latifúndio, da necessidade de grandes áreas, porque o etanol precisa de extensões grandes – eles não escondem isso. E o obstáculo são os pequenos produtores, os pequenos proprietários, os que garantem o alimento ao país, 70% do alimento. Esses estão vendo as terras desaparecerem, um pouco porque estão na pobreza e fazem qualquer negócio.

Soberania militar

Uma outra coisa que é importante no MST – porque ele acompanha, com sensibilidade, a reflexão internacional, através da Via Campesina, de mobilização das forças camponesas no mundo, em vista da defesa da Mãe Terra – é a preocupação com a soberania alimentar. Acho que é um tema muito atual e muito claro, muito explícito, na linha de política do MST, assim como da Via Campesina, de um enfrentamento do agronegócio como uma força que garante a cultura de cada povo. Eu assisti ao Congresso de Mali, na África, no ano retrasado, com a participação de povos de todos os países do Terceiro Mundo, naquele país mais pobre da África, com muita clarividência, com muita garra e certeza de ganhar a luta, ganhar o processo da garantia da soberania alimentar. Porque não é simplesmente a segurança alimentar como muitas vezes as próprias empresas genéticas, de transgênicos, como a Monsanto e outras, acenam para garantir o alimento em grande abundância para todo o mundo. É diferente, é completa e diametralmente oposto àquilo que se propõem os camponeses das diversas partes do mundo, no sentido do respeito à cultura de cada povo, ao modo de fazer, ao modo de se relacionar com a terra, da convivência com a terra, ao invés de forçar de uma maneira brutal. Como a própria transposição do Rio São Francisco: é uma violência brutal contra uma região dita semi-árida e carente de água. Na realidade, é uma região rica. Dentro dos semi-áridos do mundo, é o mais beneficiado com chuvas. Então, o caminho adotado pelo agronegócio, que visa às grandes empresas, visa ao lucro, é brutal, é de destruição, de devastação para introduzir a chamada revolução verde, que acaba sendo um deserto verde.

Pois bem, ao lado disso, já há experiências pequenas, mas muito florescentes, de camponeses, de indígenas, de quilombolas na convivência com o semi-árido. Trata-se de descobrir as formações milenares que vieram se formando, assim como produção de alimento, produção de animais adaptados àquela região, no sentido de um futuro sustentável, autosustentável, que é a proposta da soberania alimentar e uma das maiores bandeiras do MST.

As pastorais e a Igreja católica tiveram um importante papel para o nascimento do MST. Como a Igreja se posiciona hoje frente às lutas do MST e as questões da terra?

Preciso dizer que o MST existe porque houve, por parte da Igreja, a abertura para o mundo: o mundo negro, indígena, popular do Brasil, na linha do Vaticano II de abertura para o mundo. Aqui, quando os bispos tentaram aplicar as conclusões do Concílio Vaticano, a pedido do papa Paulo VI, à nossa realidade, na grande assembléia de Medellín, fizeram a opção pelo pobre, porque o mundo aqui é majoritariamente pobre: é negro, é índio, é povo da rua, é camponês sem-terra, é gente lascada. Isso ficou muito patente. Foi uma assembléia que fez a opção preferencial pelos pobres.

Essa opção pelos pobres mudou, porque a Igreja sempre se relacionou com os pobres no passado: as obras de misericórdia, os orfanatos etc. Mas desta vez, no pós-Concílio, a experiência do bispo Leonidas Proaño, no Equador, com os povos indígenas, viu no pobre daqui, no índio, um sujeito de sua caminhada, de sua história, não um objeto da nossa ação caritativa de Igreja, como eram as missões indígenas e os movimentos populares. Houve experiências de bispos que quiseram fazer de organizações camponesas verdadeiras confrarias católicas. Agora não. Autonomia! Eles são sujeitos, autores e destinatários de sua própria luta, do seu próprio futuro. Essa foi a grande mudança.
Esses movimentos começaram a se organizar, independentemente da Igreja. Mas em comunhão sempre. Nós [a CPT] estamos ligados ao MST. E era um tempo em que a Igreja tinha essa abertura para o mundo. Hoje, mudou. Graças a Deus, o MST segue no seu caminho, e na Igreja ainda tem a CPT e o Cimi que continuam, a duras penas, nessa mesma inspiração, de uma opção por esse povo, de futuro do nosso continente, do nosso país. Para dizer a verdade, houve um retrocesso da Igreja, no plano social, justamente no papado de João Paulo II, e a Igreja ainda vive isso numa forma de mais se voltar para a sua identidade clerical e suas funções de culto, do que de profecia no mundo, de ser sal, luz e fermento no meio de um mundo que sofre, como caído à beira do caminho. A Igreja não está mais exercendo aquele papel de samaritana como foi no passado.

As comemorações em Sarandi (RS) podem marcar uma ruptura histórica do movimento com o PT e o governo federal, que não foi convidado para o evento. João Paulo Rodrigues, da liderança nacional do MST, afirmou que Lula é “amigos dos nossos inimigos”. Como será a posição do MST frente ao governo Lula e ao PT, tendo em vista as futuras eleições presidenciais?

Essa é uma estratégia e uma tática próprias do Movimento. Nós sempre respeitamos isso e damos todo o apoio. Sempre demos apoio ao Movimento nas horas, por exemplo, de ocupação de terra. Nunca faltou apoio da CPT. Pode não haver de outras partes da Igreja, que, como eu disse, não estão entendendo mais essa luta social. Agora, muito mais apoiaremos no sentido de buscar corrigir os grandes desvios da política acontecidos nesse governo. Eu acho que é uma missão do MST. Se eles entrarem nisso, vão cumprir uma tarefa que é uma verdadeira expectativa, não só do Brasil, mas do continente latino-americano. Veja os países como Venezuela, Bolívia, Equador e, sobretudo, Paraguai, recentemente. Então, o horizonte é outro. O horizonte não é dos grandes negócios, dos grandes bancos, de sustentar as grandes empresas. Não é isso o que a massa popular espera. É outra coisa. Nesse sentido, se o MST tiver essa inspiração, só poderemos aplaudir.

Aproveitando a frase histórica de Barack Obama, “o mundo mudou, e nós precisamos mudar com ele”, frente às mudanças do Brasil com a era Lula, qual será o horizonte do MST com relação ao futuro?

Sociedade civil. Já houve um tempo em que se pensava num Messias, não em um Moisés, mais do que isso, em um Messias para encabeçar uma mudança. E isso nos levou a uma grande frustração, porque o nosso líder, preparado pelos movimentos que vieram crescendo durante 30 anos nesse passado, nos frustrou, na pessoa do Lula. Não é totalmente ruim. Não podemos igualá-lo a [Geraldo] Alckmin, a [José] Serra, ou a Fernando Henrique Cardoso, mas é decepcionante com relação à expectativa daqueles que o colocaram no poder. Então, acho que hoje o grande sonho, a grande expectativa é fortalecer a sociedade civil não-organizada a partir das bases.

Porque tudo virou corporação, gueto nos partidos. Tudo em torno do poder, prostituição em geral – incluindo o PT –, em busca da riqueza, da dominação, de estar bem com os que estão em cima, com os grandes, e se tornar grande com eles. Ao passo que a sociedade civil, muitas vezes, esquece a sua força, sendo que ela é o sujeito de direito, sujeito do poder. A própria Lei maior fala nesses termos. Então, acho que estamos em um momento especial desses diversos movimentos se unirem. Já estiveram desunidos, até em conflito mútuo, como os povos indígenas antigamente, que viviam se hostilizando e depois se resolveram, se reuniram em assembléia e se tornaram uma força. Imagina a força que será o Brasil, não unificando todos os movimentos, mas todos eles procurando esquecer as próprias idiossincrasias, no sentido de caminhar e criar um horizonte pátrio que seja como que um consenso, ou, mais do que um consenso, um engajamento no sentido da mudança. É nesse sentido que eu acho que eles se situam, no concreto, se opondo a Lula. Eles já foram oposição no tempo de Fernando Henrique Cardoso. Não era o PT a oposição, mas era o MST. E agora eles podem ser oposição a qualquer governo que abuse do seu poder contra as expectativas populares.

*Dom Tomás Balduíno, frei dominicano, é bispo emérito de Goiás e, durante muitos anos, foi presidente nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), sendo seu atual assessor. Também participou ativamente da criação do Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Em 2006, recebeu o Prêmio de Direitos do Homem Dr. João Madeira Cardoso, da Fundação Mariana Seixas, de Portugal, e o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Católica de Goiás por sua luta pela cidadania e direitos humanos. Em 2008, recebeu o prêmio Reflections of Hope, da Oklahoma City National Memorial Foudation, como exemplo de esperança na solução das causas que levam à miséria de tantas pessoas em todo o mundo.

03/02/2009

Do IHU On-line

Temas: Movimientos campesinos

Comentarios