No Acre, seringueiras criam coletivo para manter jovens no campo: ‘O extrativista preserva a floresta’
Moradores das cinco reservas do estado realizaram estudo inédito sobre o perfil dos habitantes dessas áreas.
Daqui a um ano e meio, a jovem Kailane da Silva Souza irá concluir o curso de administração. Mas mesmo antes de receber o diploma, ela já tem uma profissão. “Sou seringueira”, conta.
Moradora da Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes, no Acre, de onde só sai para passeios e eventos, Kailane é presidenta do Coletivo Varadouro, que une jovens na defesa dos seus modos de vida.
O objetivo do grupo é melhorar as condições do trabalho no campo para que mais jovens permaneçam nesses espaços. “Se mantivermos a cultura dos nossos ancestrais, a gente consegue preservar aquilo que eles cuidavam antigamente”, diz Richele Silva de Souza, extrativista, estudante de pedagogia e integrante do coletivo.
Entre julho e agosto de 2025, esses jovens realizaram uma pesquisa inédita a partir de entrevistas com os moradores das reservas extrativistas do estado. O documento, intitulado Populações Extrativistas da Amazônia e sua Importância nas Negociações da COP30, apresenta recomendações para que negociadores, tomadores de decisão e formuladores de políticas públicas reconheçam as populações extrativistas como atores centrais na agenda climática.
Os pesquisadores conversaram com 180 extrativistas para coletar dados e informações sobre suas rotinas e percepções sobre a crise climática. “Durante esse tempo, eu pude perceber o quanto as pessoas que vivem na reserva estão sendo afetadas pela crise climática. Sendo afetadas na alimentação, na saúde e na vida”, conta Richele, que participou da pesquisa conduzindo algumas entrevistas com os moradores da Resex Chico Mendes.
“Os animais desapareceram, os peixes diminuíram, a água está mais escassa e até a vegetação tem morrido. Tudo isso tem prejudicado muito a agricultura familiar e o extrativismo. Feijão, arroz, o milho que antes tinha o tempo certo para plantar, agora já não dá mais para saber”, lamenta.
O resultado da pesquisa foi apresentado durante a programação paralela da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), em Belém (PA), no espaço organizado pelo Comitê Chico Mendes. O documento foi entregue à ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva.
O aprofundamento na rotina dos extrativistas e a criação de documentos sobre esses trabalhadores do campo, como o que foi apresentado na conferência em Belém, têm um objetivo: influenciar políticas públicas em favor dessas populações. Afinal, são elas quem protegem os territórios, enquanto a crise climática bate à porta.
“Tudo isso me fez entender que a crise climática não é algo distante, é algo que está ali acontecendo todos os dias, afetando diretamente quem vive do extrativismo e da natureza”, alerta Richele.
‘Existem poucos jovens extrativistas’
Para as jovens Kailane e Richele, uma meta importante do trabalho realizado no coletivo é criar caminhos para manter os jovens no campo.
Nos últimos 22 anos, a população rural no Brasil diminuiu num ritmo acima da média mundial. Dados do Banco Mundial, de 2024, indicam que o percentual de habitantes do país que vivem no campo caiu 33,8% de 2000 a 2022. No mundo, a redução foi de 19,2%.
O fenômeno afeta, principalmente, os mais jovens e está ligado à falta de perspectivas de trabalho e estudo no campo, segundo estatísticas apresentadas pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), em parceria com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).
Entre aqueles que permanecem na zona rural, poucos seguem no extrativismo, conforme aponta Kailane.
“É fato que existem poucos jovens extrativistas hoje”, diz. Ela avalia que muitos jovens mudam de setor e partem para a pecuária, que proporciona maior retorno financeiro. “O que hoje se quer fortalecer nas reservas são as derrubadas e as queimadas para a pecuária. E aí a juventude, principalmente, se liga muito nisso… De que o gado, a pecuária, tem um retorno mais imediato”, diz.
Na avaliação de Richele, a falta de oportunidades de trabalho e estudo faz com que os jovens deixem essas áreas e, muitas vezes, não retornem. “Porque os jovens precisam sair das suas comunidades para estudar, para procurar um trabalho, porque lá não tem. Não tem recurso, não tem emprego, não tem estudo”, diz.
As duas entrevistadas desta reportagem realizam graduação à distância. Esse foi um caminho encontrado para estudarem sem deixar a vida no campo.
“Eu, por agora, não penso em sair”, garante Kailane. “Desde que eu nasci, eu moro lá, tenho 20 anos”, ressalta a seringueira, que também integra a Rede de Mulheres da Floresta pelo Comitê Chico Mendes, cujo objetivo é fortalecer as jovens mulheres extrativistas; e é coordenadora do Núcleo de Base da comunidade Dois Irmãos, onde vive. Todos esses trabalhos confluem para a busca de melhores condições de vida para as comunidades do campo.
Para alcançar esse objetivo, os jovens do Coletivo Varadouro, em parceria com sindicatos rurais, organizações e movimentos populares, participam de atividades formativas e eventos onde podem trocar experiências e ampliar seus aprendizados.
Em junho, Kailane esteve em Bonn, na Alemanha, na conferência preparatória para a COP30. “Foi uma experiência muito rica, muito cheia de informações e de tudo muito novo”, avalia a jovem, que aprende com os encontros, mas também tem muito a ensinar.
“O melhor horário de corte é de manhã, de madrugada ou à tardinha, mais à noite. E aí, no meio do dia a gente faz outras atividades, vai para o roçado, faz outras coisas”, ensina a jovem, sobre seu trabalho nos seringais. As lições sobre o cuidado com as árvores e o preparo da terra foram repassadas pelos pais dela, também extrativistas.
Para caminhar na mata densa, os seringueiros abrem estreitos caminhos entre a vegetação, chamados de varadouros. Daí vem o nome do coletivo, que busca traçar, a partir dos saberes da floresta, caminhos para um futuro possível.
Atualmente, participam do Coletivo Varadouro cerca de 30 jovens moradores das cinco Resex do estado do Acre: Chico Mendes, Riozinho da Liberdade, Alto Juruá, Alto Tarauacá e Cazumbá-Iracema. A pesquisa apresentada pelos jovens na COP30 foi realizada nessas áreas.
“Mesmo com todas as dificuldades, o que mais me tocou foi ver que as pessoas das Resex não querem desistir. Elas querem continuar ali lutando, resistindo, acreditando em um futuro melhor”, diz Richele.
Desmatamento
O retorno financeiro da pecuária é mais veloz, mas as consequências ambientais também são. Embora ainda tenha cerca de 91% das matas preservadas, a Resex Chico Mendes é, entre as áreas protegidas, a mais ameaçada pelo desmatamento na Amazônia.
Os dados são de pesquisas periódicas do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), instituição científica brasileira sem fins lucrativos, que tem como missão promover a conservação e o desenvolvimento sustentável no bioma.
O desmatamento dentro da reserva aumentou, principalmente, partir de 2018. Nas fronteiras, crescem as áreas de pastagem. A derrubadas das árvores perto das nascentes dos rios acaba com a fonte de água para os moradores. “Não tem mais água. Pessoas precisam se mudar de suas colônias porque não tem mais”, denuncia Richele.
As Resex são espaços de uso comunitário, criadas para que as matas sejam preservadas. Quem vive nesses lugares pratica a colheita de castanhas, do açaí, a retirada da seringa e outras atividades, todas realizadas sem que as árvores sejam derrubadas.
“Eu acredito que o extrativista preserva a floresta no dia a dia, porque ele só pode extrair da floresta se ela estiver em pé e se ela estiver viva”, diz Kailane. A maior parte da área da reserva Chico Mendes fica no município de Xapuri, onde viveu e foi assassinado o ambientalista e líder seringueiro cujo nome serviu de batismo a essa área, ainda hoje, protegida apesar das ameaças.
- Editado por Maria Teresa Cruz.
Fonte: Brasil de Fato

