Brasil: crédito para desmatadores, o cerrado por um fio

Idioma Portugués
País Brasil

Ainda ministra, Marina Silva, no início de 2008, determinou que não mais fosse concedido créditos àqueles produtores que desmatam florestas. Passados alguns meses, com a renúncia de Marina, Carlos Minc assumiu o cargo e logo revisou tal decisão. Resultado: permitiu que, numa área equivalente ao tamanho do Acre, localizada no Cerrado brasileiro, os produtores pudessem seguir desmatando florestas e com crédito concedido pelo Estado. Considerado dono de um bioma de segunda ou terceira linha em comparação à Amazônia, o Cerrado está perdendo anualmente 1,1% da sua vegetação e já perdeu 800 mil km2 no total

Entrevista especial com Jeanine Felfili

A IHU On-Line conversou sobre este assunto, por e-mail, com a professora Jeanine Felfili. Para ela, com atitudes desse tipo já perdemos mais de 12 mil espécies do patrimônio genético do Cerrado. “Devemos proteger as áreas baixas da Amazônia, mas a autorização da destruição das áreas altas onde as águas se infiltram e abastecem o lençol freático e as nascentes é uma contradição”, disse Jeanine.

Jeanine Felfili é engenheira florestal pela Universidade Federal de Mato Grosso com especialização em Planejamento de Áreas Silvestres pela Catie Costa Rica. É mestre em Ciências Florestais, pela Universidade Federal de Viçosa, e doutora em Ecologia Florestal, pela University of Oxford. Atualmente, é professora da Universidade de Brasília. Escreveu Bioma cerrado - Vegetação e solos da chapada dos veadeiros (Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007) e Análise multivariada em estudos de vegetação (Brasília DF: Comunicações Técnicas Florestais, 2007), entre outras obras.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são as características mais importantes do Cerrado – com relação a seu clima, solo, vegetação, fauna etc. – para a biodiversidade brasileira?

Jeanine Felfili – Certamente, é o clima estacional com duas estações distintas, de chuvas e secas, o que condiciona a existência da vegetação de savana (Cerrado) com uma camada graminosa contínua e uma camada arbórea esparsa. Sua vegetação, na maior parte, é de savana, condicionada por clima e solo. Mas onde atuam fatores compensatórios ocorrem florestas. As florestas de galeria ao longo dos cursos de água contêm espécies de floresta tropical úmida, e as florestas estacionais, ou matas secas, nas áreas de solos ricos, em afloramentos calcáreos, contêm espécies de caatinga. Esse mosaico de vegetação torna o Cerrado um elo por sua posição no centro da América do Sul entre as formações secas (Caatinga, Chaco) e úmidas (floresta Amazônica, Atlântica).

IHU On-Line – O Cerrado é considerado um tipo único de savana no mundo, caracterizada como a mais rica do mundo em biodiversidade. Qual é a sua influência e sua importância dentro do ecossistema mundial?

Jeanine Felfili – Grande parte das espécies de Cerrado é endêmica à América do Sul, especialmente ao Brasil e, pelo grau de ameaça, é considerada um hot spot da biodiversidade mundial. Ou seja, é um patrimônio genético de 12 mil ou mais espécies que está sendo perdido.

IHU On-Line – Sendo a segunda maior formação vegetal brasileira depois da Amazônia, como se dá a inter-relação entre os ecossistemas da Amazônia e do Cerrado? Em que se diferenciam e em que se complementam?

Jeanine Felfili – Na Amazônia, há manchas de Cerrado, as savanas amazônicas. E no Cerrado há matas de galeria ao longo dos cursos de água que contém espécies e gêneros amazônicos e que funcionam como refúgios e corredores ecológicos ligando as várias formações úmidas (Amazônia, Atlântica, Bacia do Paraná). As florestas estacionais da borda amazônica se repetem em áreas de solo fértil do Cerrado.

IHU On-Line – O Cerrado passou por imensas transformações nas últimas décadas, em razão da caça, do povoamento, da atividade garimpeira e da mineração, da agricultura e da pecuária extensivas. E menos de 2% de sua área está protegida em parques ou reservas. Quais são as chances de ele seguir existindo?

Jeanine Felfili – Poucas, pois as unidades de conservação estão ilhadas e as políticas públicas induzem ao uso agro-pecuário e energético do Cerrado.

IHU On-Line – Em março deste ano, a ministra Marina Silva assinou a portaria 96/2008, que determinava que órgãos públicos interrompessem a concessão de créditos agrícolas aos produtores que desmatam a floresta. Porém, logo após renúncia da ministra, o novo ministro, Carlos Minc, revisou a decisão e passou a permitir que, em uma área equivalente ao Estado do Acre (cerca de 155 mil quilômetros quadrados entre 96 dos 527 municípios onde fora registrado forte desmatamento, localizados em MG, MA e TO), considerada área de transição entre o Cerrado e a Floresta Amazônica, produtores possam seguir derrubando árvores da floresta, tendo suas atividades financiadas pelo Estado. Qual a sua avaliação dessa postura e que conseqüências isso poderá trazer?

Jeanine Felfili – Isso vai intensificar o desmatamento do Cerrado e induzir ao maior desrespeito às leis ambientais, pois para o Cerrado a averbação de reserva legal e a proteção das Áreas de Preservação Permanente (APP) não são requisitos para a obtenção de crédito, assistência técnica etc. Ou seja, não é preciso estar adimplente ambientalmente para receber recursos de fontes oficiais se a propriedade estiver no Cerrado.

Nascentes de grandes rios amazônicos que estão no Cerrado serão prejudicadas, assim como o balanço climático. Devemos proteger as áreas baixas da Amazônia, mas a autorização da destruição das áreas altas, onde as águas se infiltram e abastecem o lençol freático e as nascentes, é uma contradição.

IHU On-Line – Como a senhora vê o projeto de desenvolvimento nacional que promove a produção de biocombustíveis, principalmente o etanol produzido da cana-de-açúcar? O agronegócio e o Cerrado podem alcançar uma combinação que seja ambientalmente sustentável?

Jeanine Felfili – Acredito que sem a exigência da inclusão das leis ambientais (APP e Reserva Legal) na matriz de planejamento da propriedade agrícola não será possível conciliar agronegócio com proteção de recursos hídricos, biodiversidade e com o uso tradicional de produtos do Cerrado. Não será possível também sem créditos, assistência técnica e incentivos para o extrativismo e manejo sustentável no Cerrado e sem a criação de grandes unidades de conservação bem distribuídas pelo território e manejadas.

IHU On-Line – O Cerrado não está entre os biomas brasileiros protegidos pela Constituição. Quais seriam os resultados práticos que, uma vez aprovada a Proposta de Emenda Constitucional 115/95, que eleva à categoria de patrimônios nacionais o Cerrado e a Caatinga, pode alcançar?

Jeanine Felfili – Um maior respeito pela biodiversidade e pela função de proteção de recursos hídricos por parte de agentes governamentais ao formular políticas e maiores possibilidade de obtenção de recursos para conservação e pesquisa.

IHU On-Line – Qual é a situação das atuais unidades de conservação do Cerrado, sejam elas federais, estaduais ou municipais? Até que ponto sua atuação vem colaborando para a preservação desse ecossistema? Como deveria ser a sua atuação?

Jeanine Felfili – A maioria das unidades de conservação (UCs) não conta com um plano de manejo com aplicação efetiva, nem com dotação de recursos financeiros e humanos necessários para sua gestão. A academia vem colaborando com estudos para determinação de áreas prioritárias, com estudos que dão base para a criação de UCs, formando pessoal. Mas o poder executivo deveria dotá-las de condições para proteger efetivamente a biodiversidade e recursos hídricos e para o envolvimento das comunidades do entorno.

IHU On-Line – Diante desse cenário, quais são os papéis que as comunidades do Cerrado e a academia devem exercer?

Jeanine Felfili – Deveriam assumir o papel de cidadãos, colocando as questões ambientais como prioritárias para o país.

Instituto Humanista Unisinos, Internet, 10-7-08

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